Anticorpo é utilizado no tratamento de diversos tipos de cânceres. A partir de teste em camundongos, a pesquisa mostrou eficácia do biofármaco na redução de tamanho e peso de tumores
Com mais de 200 milhões de habitantes, o Brasil possui o sétimo maior mercado farmacêutico do mundo, segundo levantamento feito em 2018 pelo Conselho Federal de Farmácia (CFF). Ainda assim, o país é altamente dependente da importação de insumos e tecnologia no setor. Ao todo, mais de 90% dos medicamentos acabados e princípios ativos são trazidos de fora. O anticorpo anti-VEGF, por exemplo, utilizado para o tratamento de diversos tipos de câncer (pulmão, ovários e cólon), é totalmente importado.
Pesquisa desenvolvida na Universidade de Fortaleza, da Fundação Edson Queiroz, identificou alta concentração do anticorpo monoclonal anti-VEGF produzido em plataforma animal, especificamente no leite de caprinos geneticamente modificados e desenvolvidos na própria Universidade. O estudo é coordenado pelos pesquisadores do Núcleo de Biologia Experimental (NUBEX), Kaio Tavares, Leonardo Tondello e Saul Gaudêncio.
Tondello destaca que uma cabra transgênica produz diariamente anti-VEGF suficiente para o tratamento de até 60 pacientes. O pesquisador aponta que, no Brasil, um frasco contendo 400 mg do biofármaco custa até 7 mil reais. Os caprinos estão produzindo em média 3,8 gramas do anticorpo por litro de leite, o que corresponde a 9,5 frascos / litro de leite. Dessa forma, a produção do medicamento surge como uma nova alternativa para o tratamento da doença, já que a produção do medicamento no leite caprino é consideravelmente mais barata em comparação a outras plataformas de produção.
Os biofármacos são medicamentos que constituem a classe de drogas mais inteligente da atualidade, resultando em tratamentos eficazes e seguros. Eles são produzidos a partir de organismos vivos geneticamente modificados como bactérias, fungos, leveduras, células animais ou vegetais, em plantas ou animais, e se destacam pelo efeito terapêutico específico, aumentando, assim, a probabilidade de cura e reduzindo os efeitos colaterais.
Os pesquisadores identificaram que o anti-VEGF encontrado no leite de caprinos transgênicos possui estrutura semelhante aos anticorpos humanos. Isso significa que tem baixo potencial de ser rejeitado pelo organismo humano. “Quando se fala em biofármacos, sempre há preocupação com o índice de rejeição. Vários produtos que estão no mercado causam certo grau de rejeição, ocasionando algum grau de reação imune nos pacientes. Mesmo assim, são comercializados porque o efeito terapêutico deles compensa”, afirma Tondello.
Em análise comparativa entre o anti-VEGF produzido no caprino geneticamente modificado e o anti-VEGF comercial Avastin, utilizado hoje no mercado para o tratamento do câncer, a pesquisa detectou que o anticorpo produzido no leite de cabra transgênica é ainda mais semelhante à imunoglobulina humana do que o próprio Avastin.
Os estudos também analisaram a eficácia e a atividade do anticorpo. Os cientistas realizaram testes pré-clínicos in vivo em camundongos com câncer de pulmão. Os animais que foram tratados com o anti-VEGF produzido no leite de caprinos transgênicos tiveram uma redução bastante significativa no tamanho dos tumores.
Os estudos também resultaram na elaboração de protocolo de purificação cujo processo traz resultados acima de 70%, o que significa alta eficiência. Como o anti-VEGF é obtido a partir do leite do caprino, o anticorpo precisa ser purificado, já que eventualmente será aplicado na corrente sanguínea, pela via endovenosa. Neste caso, é necessário que o anticorpo esteja totalmente purificado.
Pioneirismo e inovação
A Universidade de Fortaleza é pioneira no país na produção de biofármacos por meio de plataforma animal, utilizando a clonagem por transferência nuclear de células somáticas com células transgênicas como meio para estabelecer um sistema de expressão em leite de cabra.
Em maio de 2019, nasceram os primeiros caprinos geneticamente modificados destinados à produção do anti-VEGF. As cabras, produzidas e geradas na Universidade, permitiram uma produção em maior escala do biofármaco.
Essa plataforma de produção é inovadora, produtiva, escalonável e segura para a síntese de biofármacos. “É só mais uma plataforma de produção, embora seja considerada inovadora visto que pouquíssimos grupos e indústrias dominam essa tecnologia mundo afora”, explica Tondello.
Parceiros celebram resultados
O projeto é desenvolvido em parceria com a Fortgen Technologies, empresa incubada na Universidade de Fortaleza, com a Universidad de Concepción, no Chile, e com o Centro de Biotecnologia y Biomedicina (CBB), empresa chilena. Os resultados obtidos pela equipe concentraram-se nos últimos dois anos. “Fazendo um comparativo desse pacote de resultados com o nascimento da Gluca, a primeira cabra transgênica da América Latina, produzida na Universidade de Fortaleza, isso agora é consideravelmente mais amplo e complexo. Agora nós estamos falando sobre a produção de um animal transgênico, que produz o biofármaco adequadamente no leite, em alta concentração. Falamos de purificação, de avaliação da estrutura molecular positiva e de atividade in vivo”, reitera Tondello.
Pesquisa na Unifor
A Universidade de Fortaleza desenvolve pesquisas com caprinos transgênicos desde 2010. Inicialmente, o objetivo era diminuir a mortalidade infantil e a diarreia no semiárido do país. As pesquisas se expandiram para o desenvolvimento de biofármacos para o tratamento de outras doenças, como a doença de Gaucher, doenças autoimunes, leucemias, linfomas entre outras.
Um marco foi o nascimento da cabra Gluca, o primeiro caprino transgênico da América Latina produzido pela técnica de clonagem de células geneticamente modificadas. O nome foi dado devido à uma proteína que ela produz no leite, a glucocerebrosidase. Quem não a produz tem comprometimento de órgãos como fígado, baço, e no sistema nervoso central, além de dor nos ossos. Os sintomas caracterizam a doença de Gaucher, uma enfermidade genética rara.
Em 2015, nasce Beta, o segundo clone transgênico de cabra da América Latina. A Beta foi produzida a partir de células da Gluca, sendo o clone de um clone. A ideia era produzir um rebanho que produzisse a glucocerebrosidase.
No ano de 2016, houve o nascimento de três clones transgênicos para lactoferrina, proteína encontrada no leite humano com propriedades antibacterianas, antifúngicas e antivirais.
Desde o ano de 2019, pesquisadores direcionaram seus estudos para o desenvolvimento do anti-VEGF. Em maio nasceram os primeiros caprinos geneticamente modificados para a produção do anticorpo monoclonal anti-VEGF. As três cabras produzidas e geradas na Unifor permitiram uma produção em maior escala do biofármaco.