Na briga da bactéria com o vírus, quem se deu bem foram os humanos. O Crispr, uma técnica de edição genética baseada num sistema defensivo de bactérias, é visto como uma forma promissora de combate a inúmeras doenças, inclusive o câncer. Além disso, abriu novas frentes de trabalho em diversas áreas da saúde, como o transplante de órgãos.
“Nosso DNA é um monte de bloquinhos em sequência e, se tem uma mutação ali que causa um prejuízo, o sistema [Crispr] vem com a tesourinha e começa a fazer como se fosse uma cirurgia no DNA, corrigindo essa mutação”, diz Ernesto Goulart, pós-doutorando no Centro de Estudos do Genoma Humano e Células Tronco da Universidade de São Paulo (USP).
Assim, o Crispr permite inativar, retirar ou substituir pedacinhos de genes. Para chegar em como isso acontece, é preciso voltar cerca de uma década. No começo dos anos 2010, diversos grupos de cientistas estudavam como bactérias se defendiam contra vírus bacteriófagos. Em um trabalho com bactérias Streptococcus pyogenes, descobriu-se que elas faziam isso com ajuda de uma enzima chamada Cas9.
“Descobriram, no genoma das bactérias, sequências repetitivas e disfarçadas de vírus”, conta Goulart. Essas sequências são chamadas de Crispr. “Quando a bactéria era atacada por um vírus, à medida que essas sequências eram convertidas em RNA, a Cas9 identificava onde uma letrinha encaixava na outra e tornava o vírus inativo.” Há técnicas de Crispr que utilizam outras enzimas Cas, mas a Cas9 é a mais popular.
A partir dessas descobertas, as pesquisadoras Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier desenvolveram um novo método de edição de genes. Comparado com os padrões anteriores de engenharia genética, o Crispr-Cas9 é mais preciso, rápido, e incomparavelmente mais barato. A dupla ganhou o Prêmio Nobel de Química em 2020.
“É difícil falar do limite dessa técnica, já há muitas abordagens, mas temos estudos clínicos para tratamento de anemia falciforme e hemofilia, por exemplo”, diz o pesquisador da USP. Goulart trabalha com Crispr numa linha de pesquisa que pode parecer inusitada: xenotransplante.
O objetivo é modificar o genoma de porcos para tornar os órgãos desses animais compatíveis para o transplante em humanos. O pesquisador, cuja meta de carreira é zerar a fila de transplante a partir de técnicas inovadoras como Crispr e bioimpressão, prevê um prazo ambicioso para os xenotransplantes virarem realidade.
“Nós queremos ser o primeiro grupo do mundo a fazer um xenotransplante”, diz ele. “E acredito que vamos fazer isso em cinco anos.”
Ao lado desse horizonte de esperança, o Crispr também traz uma faceta preocupante: o risco de usar engenharia genética para mudar características físicas – cor dos olhos, tom de pele, formato do rosto – sem qualquer relação com doenças. Hoje, o consenso da comunidade científica é que isso não deve ser feito. “Não será recomendável realizar edições genéticas em tecidos germinativos”, explica Goulart. “Só vamos realizar em células somáticas de indivíduos adultos, de forma que modificações não passem para as próximas gerações.”